Guimarães Rosa disse, no clássico Grande Sertão: Veredas, que “viver é um descuido prosseguido”. A verdade é que nunca se sabe quando um incidente pode acontecer e mudar a vida de uma hora para outra. Lucinei Pereira da Silva, de apenas 37 anos, aprendeu essa lição da maneira mais severa possível, após sofrer um acidente de moto e ficar com uma lesão grave no pé, que não melhorava e a impedia de retomar a rotina normal. Depois de desenvolver uma escara (lesão na pele), Ercila Soares Rodrigues, de 45 anos, também ficou na mesma situação. Coisa parecida aconteceu com Antônio Paixão Sobrinho, de 73 anos, que teve um corte profundo no pé e não conseguia cicatrizar o machucado de jeito nenhum. Já sem saber o que fazer para se recuperar, essas três pessoas encontraram a cura pelas mãos da enfermeira Francieli Antunes, que as recebeu em seu consultório, tratou as feridas e devolveu a elas a alegria de viver saudável.
“Ela foi enviada por Deus para cuidar do meu marido. Ele cortou a metade do pé e desde o ano passado a doutora está cuidando dele. O trabalho dela é muito positivo. Está quase terminando de sarar”, conta Dona Zinha, que é esposa do Seu Antônio. “Ela me recebeu com todo carinho e começou a fazer as seções a laser, que ajudaram muito na cicatrização. Estou muito feliz e muito agradecida por todo o trabalho que ela fez e está fazendo. É uma profissional incrível e muito eficiente”, relata Lucinei, que já está praticamente recuperada. “Em uns dez dias de tratamento, ela já conseguiu obter um excelente resultado. Estou muito contente com o trabalho que ela está fazendo com minha esposa”, reconhece o marido de dona Ercila, Miguel Duarte da Silva.
Assim como centenas de profissionais de enfermagem em todo o país, a rondoniense Francieli Antunes viu no empreendedorismo a chance de abrir seu próprio negócio, exercer sua autonomia profissional, mudar de vida e, de quebra, ajudar pacientes que antes não contavam sequer com serviços básicos de saúde. “Atendo todo tipo de pessoa, de todas as classes sociais, de todas as idades. Acabou de sair do meu consultório uma criança de 3 anos, com uma lesão na cabeça”, conta a enfermeira, que começou a empreender logo ao se formar. “Ainda na faculdade, eu tive essa visão empreendedora. Comecei com uma empresa de serviços de home care, que vendi no ano passado. Atualmente, tenho um consultório de tratamento de feridas, que atua com terapias avançadas e também empreendo em uma área que carrego como uma paixão: a moda. Abri uma empresa de jalecos, em parceria com uma amiga e hoje me dedico a essas duas atividades, que me dão uma ótima qualidade de vida”, conta.
Mas não é só nesses ramos de atuação que profissionais de Enfermagem estão ganhando destaque no mundo dos negócios. Na capital do país, o enfermeiro José Junior também transformou suas duas maiores paixões em um empreendimento inovador. “Sempre fui vocacionado para a área da saúde e sempre amei os esportes. Eu queria ter algo que aliasse essas duas paixões. Então, decidi abrir uma empresa especializada em situações de urgência e resgate. Foi a melhor decisão que tomei na vida. Por meio da minha empresa, que mantenho com um sócio, realizo o sonho de atuar em grandes eventos de luta, automobilismo, corridas de rua, motocross, hipismo, kart. Fui enfermeiro de campo na Copa das Confederações, na Copa do Mundo e em três edições do UFC. Já trabalhei em shows da banda Kiss, do Julio Iglesias, da Alanis Morissette. Eu me sinto realizado”, afirma.
Empreender mudou a vida do José Junior, e o enfermeiro recomenda o mesmo caminho para outros profissionais que também desejam ter autonomia e trabalhar com o que gosta. “Vale muito a pena. Enquanto a gente vende horas de trabalho para empregadores, nós estamos enriquecendo outras pessoas. Podemos vender o nosso trabalho e gerar riqueza para nós mesmos. Dá um pouco de dor de cabeça, a rotina é intensa, mas compensa. Nosso campo de atuação é amplo e existem muitas oportunidades em diversos segmentos e especialidades”, pontua. Além do ramo de tratamento de feridas, home care e serviços de atendimento pré e pós-hospitalar, a Enfermagem oferece novas oportunidades de empreendimento, como casas de parto, salas de vacinas, clínicas de gerontologia, de estética, de saúde mental, de obstetrícia, de pediatria, de neonatologia e de tecnologia.
“Como empreendedora, estou sempre em busca de inovações e soluções pra resolver problemas. A decisão de fazer a diferença para quem eu sirvo me motiva. É uma rotina diária de persistência e estudos para desenvolvimento de ideias comerciais, criação de soluções de saúde e investimento de recursos para a construção de uma empresa sólida. Atualmente, oferecemos atendimento de saúde domiciliar, serviços de internação, atendimentos pontuais para procedimentos de saúde, administração medicamentosa, retirada de pontos, banho no leito, acompanhamento hospitalar, oxigenioterapia, aluguel de equipamentos, auditorias para planos de saúde, entre outros serviços”, conta a enfermeira. A busca por autonomia profissional tem levado cada vez mais profissionais de Enfermagem a buscarem o empreendedorismo como um caminho para tomar as rédeas da própria vida e ter um retorno financeiro mais justo do trabalho que realizam. Esse também foi o caso da enfermeira Flávia Alessandra, de Ji-Paraná. Ao perceber uma demanda crescente por serviços de saúde domiciliares em sua região, ela decidiu abrir uma empresa que presta serviços de home care. Hoje, a empresária gera emprego para mais de 50 pessoas.
Ninguém nasce empreendedor, é o contato social que favorece habilidades e características empresariais. A solução para enfrentar as dificuldades é ter posicionamento adequado, resiliência, autoconfiança, persistência, equipe qualificada e foco no resultado. A zona de conforto e o sucesso não podem coexistir. Portanto, é necessário empregar determinação e coragem. Quem quer seguir esse caminho deve definir em qual atividade deseja empreender, identificar quais os problemas do público pode solucionar e, a partir dessa leitura de cenário, definir em qual negócio investir. É necessário buscar ser o melhor e estar à frente da concorrência, pois isso fortalecerá a marca da empresa e motivará os clientes a procurarem pelos serviços. Além disso, nunca se pode parar de estudar, pois novos conhecimentos proporcionam posicionamento sólido no mercado.
Movida pela paixão pela obstetrícia, a enfermeira Letícia Nicoletti montou uma empresa de cuidados para mulheres, gestantes e bebês em Brasília. Ela conta que se encantou por essa área justamente pelo contato direto que proporciona com as pacientes. “Quando eu fiz a especialização, diante da minha prática no dia a dia, fui percebendo que muita coisa que poderia agregar na minha assistência ficava restrita, porque estava dentro de um protocolo hospitalar. Então, veio esse desejo de ampliar essa assistência e ter autonomia e liberdade de decisão. Quando eu e uma sócia passamos a desenvolver esse fluxo de atendimento, começaram a surgir clientes que estavam buscando justamente esse tipo de cuidado personalizado e humanizado. Foi uma luta árdua, pois a nossa formação não prepara para o empreendedorismo. Mas com persistência, erros e acertos, conseguimos formalizar a empresa, que hoje já está com cinco anos de atuação e duas unidades em funcionamento. Abrimos a possibilidade para sócias-cotistas e estamos ampliando cada vez mais o nosso rol de serviços”, frisa.
A socióloga e historiadora Luana Nascimento, assim como centenas de mamães brasilienses, foi acompanhada pela empresa da enfermeira Letícia Nicoletti antes, durante e após o parto. Seu filho Lino Nascimento Souza veio ao mundo saudável, em segurança, por meio de um parto humanizado e dentro dos protocolos combinados com a equipe. “Durante toda a gestação, elas estiveram disponíveis e atenderam todas as minhas necessidades. As consultas e o curso de formação me deixaram preparada para o momento do nascimento do meu filho. Eu decidi fazer o parto hospitalar, mas quis ter perto de mim profissionais que eu conhecesse e confiasse. Nesse sentido, o trabalho das enfermeiras foi primoroso e fez toda a diferença para que eu me sentisse segura e amparada em cada momento. Toda mulher deveria ter acesso e direito a esse tipo de cuidado”, considera.
O amor pelas gestantes e pelos bebês também levou a enfermeira Carla Mendes a empreender. Ela se formou em janeiro de 2020, aos 45 anos. Em março, começou a pandemia e, sem experiência, a profissional recém-formada se viu sem oportunidades no mercado de trabalho. Para não deixar a formação esfriar, fez um curso de oncologia multiprofissional. Apaixonada por ginecologia e obstetrícia, fez também um curso de consultoria em amamentação. Durante os estudos, conheceu a laserterapia e decidiu abrir um consultório.
“Eu precisava fazer algo, eu queria atender pacientes, eu queria transformar vidas. Não foi difícil, pois o sonho era grande. Tudo fluiu ao meu favor. Os cursos terminaram, eu comprei o material e passei a atender em domicílio. Comecei a tratar fissuras mamilares, feridas operatórias e lacerações. Iniciei assim, fiz a página na internet e fui a visitar os serviços de saúde, para divulgar meu trabalho. Foi então que tomei a iniciativa de formalizar a abertura do meu consultório e hoje sou empreendedora. O meu papel é identificar o problema, adotar os procedimentos adequados e resolver a situação. A paciente que fecha tratamento comigo vai ver o processo de cicatrização acontecer. Isso é possível com a abordagem certa, mesmo a ferida sendo crônica”, revela Carla.
Após sugestão do Cofen e de outras entidades, em fevereiro deste ano, a diretoria colegiada da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) aprovou a cobertura obrigatória de consultas de Enfermagem Obstétrica pelos planos de saúde. A medida representa uma vitória para as enfermeiras e enfermeiros obstetras e empreendedores, que vão passar a ter ainda mais independência e autonomia no exercício da profissão e na assistência às gestantes. Segundo a decisão, os planos devem cobrir até seis consultas de pré-natal e duas de puerpério. Reforçando este entendimento, a Justiça Federal negou a terceira tentativa do CFM de impedir profissionais de Enfermagem especializados realizarem ultrassom obstétrica.
De acordo com dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), existem atualmente 291 empresas registradas com o termo “enfermagem” no nome. Além desses empreendimentos especializados, profissionais da área possuem outros tipos de negócio, como comércio de produtos e desenvolvimento de tecnologias para atender demandas do mercado de saúde, que é amplo, diversificado e oferece inumeráveis oportunidades de negócio. “Minha visão empreendedora na área da enfermagem é muito ampla e eu sei que posso crescer cada vez mais. Em tudo que eu olho, vejo uma oportunidade de crescer. Hoje, a demanda é incrível, é satisfatória. Lógico que para ter clientela eu invisto bastante em marketing e propaganda, tanto no meio digital quanto na TV, no rádio e no famoso boca a boca. É muito amplo, é rentável”, descreve Francieli Antunes, que mantém seu consultório de Enfermagem em um renomado hospital de Rondônia.
Embora seja o caminho mais reto para a autonomia profissional, Francieli adverte que não é fácil seguir essa trajetória. “Eu levo três palavrinhas para todos os negócios: paciência, persistência e constância. Eu foco no que eu posso fazer e no que eu devo fazer. Eu não foco na dificuldade, eu foco no resultado. Esse é o segredo. Empreeender no Brasil é muito difícil, principalmente no que diz respeito aos impostos. Precisamos pagar e, infelizmente, embutir isso no produto final. Costumo dizer que empreender não é para os fracos. Não podemos glamourizar, é puxado. Mas, com o tempo, o reconhecimento vem, o dinheiro vem. Hoje, eu tenho um salário incrível, que me permite manter uma ótima estrutura e ainda poupar recursos”, diz.
Em sua primeira reunião, o GT analisou diversas experiências exitosas, como associação de tecnologia para tratamentos dermatológicos, desenvolvimento de metodologias de ensino com ênfase no protagonismo profissional e a inclusão da Enfermagem nas auditorias de compra de material hospitalar, entre outros serviços que estão despontando como oportunidade.O direito de profissionais de Enfermagem a empreender e ter o próprio negócio é assegurado pela Lei 7.498/86 e regulamentado pelas Resoluções 358/19, 568/18 e 606/19, do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Recentemente, a autarquia instituiu um Grupo de Trabalho de Inovação e Empreendedorismo na Enfermagem, formado por pesquisadores e experts no assunto, para dar apoio institucional a quem deseja seguir esse caminho. “Vamos desenvolver um processo de coleta de dados sobre ações empreendedoras, auxiliar novos pesquisadores e dar voz aos que pretendem contribuir para a saúde com mais descobertas,” explica a presidente do Cofen, Betânia Santos.
O grupo de trabalho é liderado pelo vice-presidente do Cofen, o enfermeiro e advogado Antônio Marcos Freire. Ele entende que o empreendedorismo é o caminho para consagrar o pleno exercício da autonomia profissional. “Com tantos problemas que o Brasil tem na saúde, a enfermagem possui uma grande chance de ser o diferencial. É uma atividade multidisciplinar, que nos possibilita crescer, fazendo o que fomos preparados para fazer, que é ajudar as pessoas. Queremos dar apoio aos colegas que trabalham, que têm ideias novas e que entregam grandes benefícios aos pacientes. O país ainda se encontra sem grandes incentivos para empreender na área da saúde. O que temos hoje surge em função da iniciativa, da vontade e da própria natureza criativa dos profissionais. Dentro das nossas possibilidades, pretendemos tornar o cenário mais favorável”, indica.
Membro da comissão, a enfermeira Cristiane Alves Pereira, que também é professora-doutora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP), está bastante entusiasmada com a iniciativa do Cofen. Ela conta que sua relação com o empreendedorismo surgiu justamente a partir da constatação de lacunas na formação em enfermagem para o desenvolvimento de competências relacionadas ao empreendedorismo e à inovação. “Embora a USP tenha forte tradição nesse sentido, a nossa formação não estava inserida nesse ecossistema. Essas lacunas se transformaram em oportunidade para a criação de disciplinas de pós-graduação, em 2013 e de graduação, em 2018. A maior dificuldade que ainda temos é o reconhecimento das competências empreendedoras próprias da enfermagem, além do preconceito e desconhecimento sobre o tema. Entretanto, a pandemia reforçou que as possibilidades são inumeráveis e amplamente diversificadas. Não é só possível, é imprescindível empreender e inovar na enfermagem”, assevera.
Segundo Cristiane, quando se considera problemas e necessidades como oportunidades para desenvolver ideias inovadoras e criar valor para os outros, o Brasil apresenta um cenário riquíssimo. Principalmente para a enfermagem, que é um ator estratégico para promover o bem estar das pessoas e assegurar uma vida mais saudável para todos, em todos os níveis de atenção e serviços de saúde. “Esse caminho pressupõe o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes. Ou seja, o desenvolvimento de competências, para que as iniciativas não fiquem apenas no campo das ideias. Deve-se buscar oportunidades para reconhecer os próprios talentos, pois esses dons podem ir ao encontro das necessidades do mundo e transformar a vida das pessoas, além de alcançar a autorrealização pessoal e profissional”, preconiza a professora.
A formação da comissão de empreendedorismo no âmbito do Cofen expressa a valorização buscada pela categoria e serve como vitrine, que mantém em evidência histórias inspiradoras. “O sonho de dar visibilidade às estrelas do empreendedorismo na enfermagem agora é real. Buscamos dissipar nuvens, desembaçar as lentes e colocar foco no apoio necessário para essas estrelas brilharem mais e não passarem despercebidas, nem se tornarem estrelas cadentes. Eu conheço verdadeiras constelações, com histórias lindas, que podem despertar outras estrelas nascentes, para brilhar nesse universo de possibilidades, para iluminar e trazer mais vida e saúde às pessoas”, defende a professora Cristiane.
Em relação às tentativas do Conselho Federal de Medicina (CFM) de impedir as iniciativas empreendedoras e o livre exercício profissional da enfermagem por meio de processos judiciais, o vice-presidente do Cofen assume uma postura ponderada e conciliadora. “É apenas uma questão corporativa, que atinge somente o núcleo das corporações e não condiz mais com a realidade. A grande maioria dos médicos brasileiros entende a relação de trabalho com a enfermagem como algo produtivo, que permite avanços no atendimento da população”, avalia Freire. Em decisões recentes, a Justiça Federal tem confirmado a autonomia da enfermagem para empreender e sentenciado a segurança jurídica para o funcionamento de clínicas e consultório de enfermagem, bem como de outros tipos de estabelecimentos especializados administrados por enfermeiras e enfermeiros.
Embora ainda haja um longo caminho a percorrer, a produção científica sobre o assunto começa a ganhar volume no Brasil. De acordo com dados do Google Scholar, a busca por artigos científicos e estudos de caso que contenham os termos “consultório”, “consulta” e “enfermagem” reporta aproximadamente 22 mil resultados e a busca pelos termos “enfermagem” e “empreendedorismo” na plataforma devolve mais de 18 mil resultados. Aos profissionais e estudantes que pretendem empreender, primeiramente, é recomendado um estudo aprofundado da linha de atuação que se deseja seguir.
“A qualidade da assistência exige um pleno conhecimento daquilo que se está realizando e da legislação em torno da atividade. Estudar os desafios, as oportunidades e as adversidades é obrigatório. Aprender sobre economia e mercado também, para saber como as relações comerciais se dão. Com trabalho e doação, a chance de ser vitorioso existe. Para dar certo, não pense primeiramente na questão financeira. Pense em fazer um trabalho de qualidade, que ajude as pessoas e o retorno financeiro será uma consequência. O empreendedorismo pode ser o incidente que vai mudar a sua vida”, finaliza Antônio Marcos.
Reportagem: Laércio Tomaz/Cofen