Assim como milhares de profissionais de Enfermagem, a técnica Lúcia Helena Nunes, de apenas 39 anos, precisava se desdobrar além da conta para conseguir o sustento da família. Separada, com um filho para cuidar e morando de aluguel, ela fazia plantões de 24 horas a cada dois dias em serviços de home care, mas o que ganhava não dava para pagar as despesas no final do mês. Sob pressão constante, vivia à procura de outros trabalhos, para complementar a renda.
Lú, como era carinhosamente conhecida pelas amigas, reclamava constantemente da exaustão de suas jornadas. “Cuidava dos outros, mas não tinha tempo para cuidar de si mesma”, define a irmã Diana Nunes dos Santos, de 42 anos. Com o passar dos anos, a situação de dificuldade enfrentada por Lúcia Helena foi se perpetuou e começou a se converter em angústia, desalento e problemas de saúde.
“Nós fizemos o curso juntas, tínhamos um grupo de WhatsApp com outras amigas. Marcávamos alguns encontros, mas, com o tempo, parou de acontecer. Todas ficamos muito ocupadas e ninguém tinha mais tempo. Depois de alguns meses sem vê-la, encontrei a Lú e fiquei assustada. Ela estava muito exausta, acima do peso e aparentemente deprimida. Nem de longe lembrava a pessoa animada e extrovertida que era”, relata a amiga Adriana Soares.
O quadro de Lúcia Helena foi se agravando, até que ficou insustentável. No dia 15 de abril, ela passou mal e foi levada para a UPA Samambaia. Após esperar muitas horas por atendimento, foi examinada e ficou internada. Na madrugada do dia 16, Lú sofreu um infarto. A equipe médica tentou reanimá-la por mais de uma hora, mas não teve sucesso. Ela morreu. Seu sepultamento aconteceu no dia 17, data do seu aniversário de 40 anos.
A sua partida foi tão repentina que chocou a todos. “Até agora, a ficha ainda não caiu, não acredito que ela se foi. Era um ser humano maravilhoso, uma ótima profissional. Cuidava muito bem do meu pai. Tenho muito a agradecer a ela”, relata Carla Valéria, filha do Seu Carlos, último paciente de Lúcia Helena.
“A história de Lúcia Helena é igual a de milhares de mulheres da Enfermagem, que são chefes de família, trabalham em jornadas exaustivas e recebem salários miseráveis, insuficiente para pagar as contas. Abandonadas à própria sorte e sem perspectivas de mudança, passam a levar uma vida tão extenuante que começam a ser ameaçadas por doenças, pela depressão e pela morte. São mortes evitáveis, fruto de um sistema injusto e excludente”, considera o vice-presidente do Coren-DF, Dr. Alberto César.
De acordo com a pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil, 8 a cada 10 profissionais de Enfermagem são mulheres no Brasil. Entre essas pessoas, 34,7% da trabalham 40 horas semanais e 24,7% trabalham entre 41 e 60 horas semanais. O retorno financeiro por essas jornadas exaustivas é precário. No setor público, 13% ganha um salário mínimo, 30,6% ganha no máximo R$ 2 mil e 17,5% recebe até R$ 3 mil. No setor privado, é ainda pior, com 21,1% dos profissionais de enfermagem ganhando apenas um salário mínimo, 31,9% com renda de no máximo R$ 2 mil mensais e 14,2% alcançando patamar salarial de apenas R$ 3 mil.
Enquanto isso, os maiores hospitais do país e as operadoras de planos de saúde acumulam cifras exorbitantes. Levantamento da Classificadora de Risco Austin Rating aponta que, entre o primeiro trimestre de 2018 e o de 2019, as receitas do setor subiram 7%, de R$ 166,035 bilhões para R$ 177,694 bilhões. Em 2020, alcançaram o patamar de R$ 180,503 bilhões (1,6%). De acordo com dados da ANS, considerando apenas os primeiros 9 meses de 2020, as operadoras tiveram lucro líquido de R$ 15 bilhões e o grupo formado pelos 122 maiores hospitais privados do país encerrou o ano passado com lucro líquido de R$ 30,6 bilhões. De maneira insensível, o setor aprofunda a exploração dos trabalhadores da saúde e se nega a socializar qualquer parte desses resultados.
“Lamentavelmente, a situação dos profissionais de enfermagem, que já não era boa, foi agravada pela pandemia. O excesso de pacientes, as jornadas exaustivas de trabalho, os salários miseráveis e a falta de local adequado para descanso criou terreno fértil para o adoecimento físico, mental e social de uma categoria que está literalmente dando a vida para salvar vidas. Após mais de um ano lutando arduamente na linha de frente contra a Covid-19, os números são assustadores, as dores são insuportáveis e os trabalhadores da ciência do cuidado se encontram esgotados, deprimidos e desesperançados. O novo coronavírus já infectou 53.674 e matou 776 profissionais da nossa categoria desde o início dessa crise. A maioria das vítimas eram mulheres, com filhos pequenos e uma vida inteira pela frente”, revela o presidente do Coren-DF, Dr. Elissandro Noronha.
O desgaste causado pelo elevado número de casos e mortes de pacientes, colegas de profissão e familiares é estarrecedor. De acordo com os resultados da pesquisa Condições de Trabalho dos Profissionais de Saúde no Contexto da Covid-19, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em todo o território nacional, a pandemia alterou de modo significativo a vida de 95% dos profissionais de enfermagem. Os dados revelam que aproximadamente 50% dos trabalhadores alegam excesso de trabalho e 45% precisa atuar em mais de um emprego para sobreviver.
Os dados da Fiocruz indicam que 43,2% dos profissionais de saúde não se sentem protegidos no trabalho de enfrentamento à Covid-19. Segundo a pesquisa, esses trabalhadores sofrem de perturbação do sono (15,8%), irritabilidade e choro frequente (13,6%), incapacidade de relaxar (11,7%), dificuldade de concentração ou pensamento lento (9,2%), perda de satisfação na carreira ou na vida (9,1%), sensação negativa do futuro e pensamento suicida (8,3%) e alteração no apetite e alteração do peso (8,1%). O estudo demonstra ainda que 14% da força de trabalho que atua na linha de frente do combate à Covid-19 no país está no limite da exaustão.
De acordo com a pesquisa da Fiocruz, os profissionais de enfermagem sofrem com a desvalorização pela própria chefia (21%), a grande ocorrência de episódios de violência e discriminação (30,4%) e a falta de reconhecimento por parte da população usuária (somente 25% se sentem valorizados). Esses trabalhadores são vítimas de discriminação na própria vizinhança (33,7%) e no trajeto trabalho/casa (27,6%).
“Se nada for feito para mudar a realidade das profissionais de Enfermagem no Brasil, o quadro tende a piorar e o país vai perder mais mulheres jovens, como perdemos Lúcia Helena. Mães de família não podem ser exploradas dessa forma, o estado não pode continuar se omitindo em relação a isso. A sociedade precisa reagir”, finaliza o presidente do Coren-DF.