A profissionalização da enfermagem brasileira revela marcos de significativas desigualdades que repercutem, drasticamente, nas condições de empregabilidade e no desenvolvimento do trabalho das profissionais até os dias de hoje.
A divisão social do trabalho atribuiu ao gênero masculino a apropriação de saberes científicos e técnicas específicas que justificaram e ainda atribui importância e valorização da atuação do médico no espaço social público, hierarquizando-a frente à prática da enfermagem, exercidas pelas mulheres como se fosse extensão do ambiente doméstico.
Ainda que ao longo do tempo, o processo de qualificação venha determinando apropriação de saberes e delimitação de práticas profissionais, essas profissões mantêm no imaginário, uma relação de reconhecimento e respeito da medicina, em contraposição a um status de subordinação e de complementariedade da enfermagem. Vale relembrar os critérios definidos para o ingresso nos cursos de enfermagem: o pertencimento social, a boa educação, ser da ‘raça branca’, evidenciar valores morais e caridosos ‘para o desempenho do maior serviço que uma mulher prendada’ poderia prestar.
Acrescenta-se a essa compreensão a histórica referência de Florence Nigthingale que idealizou a enfermagem sustentada em três pilares: ‘a arte, a ciência e o ideal cristão’, reforçando a concepção de uma prática assentada em valores humanitários, religiosos, afinados com a ‘vocação’ do gênero feminino: o cuidado e a abnegação. Atribui-se a ela também o modelo de organização do trabalho na área, determinando a prestação dos ‘cuidados diretos’ às profissionais com menor escolaridade, e a supervisão, o planejamento e o ensino às de maior escolaridade e de outra classe social.
Essa divisão técnica e social do trabalho é uma condição que favorece imensamente a exploração das trabalhadoras no sistema capitalista de produção: atribui-se a um grupo um rol de tarefas cujo processo de trabalho garantirá a cobertura da produtividade do setor, e emprega-se um porcentual muito menor de profissionais que irão supervisionar, controlar e garantir a qualidade técnica demandada pelo processo de produção. Na realidade brasileira essa divisão social e técnica é também determinada pela ‘estratificação social’1 que mantém a maioria negra, no nível médio das ocupações, supervisionada por uma minoria branca que acessou à formação universitária.
Apesar do aumento da cobertura assistencial à saúde da população brasileira nas últimas décadas, expresso pela expansão dos serviços e significativa contratação de profissionais, persiste a lógica da exploração dessa força de trabalho, que é feminina e responsável por cerca de 60% da produção do setor saúde. Essa estratégia empresarial atinge a todas indistintamente, visto que os salários oferecidos são bastante inferiores quando comparados a outras profissões da saúde2 ou do mercado de maneira geral.
Além dos baixos salários, as condições de trabalho em si, já são determinantes de desgastes: restrição ou insuficiência de pessoal, equipamentos e ambientes com precárias condições de manutenção e instalações, ausência de locais para descanso, e não observância dos direitos trabalhistas como creches, assistência à saúde entre outros.
A exposição continuada a esse processo de trabalho, aliado à multiplicidade de papéis exercidos pelas mulheres na dinâmica social e cultural da nossa sociedade, impõe consequências: a vinculação a mais de um vínculo empregatício, particularmente no contexto atual em que são chefes/provedoras das famílias, a busca constante por melhor qualificação profissional que possibilite a mobilidade na estrutura ocupacional e a impossibilidade de participação em movimento sociais e políticos que a ajudem a compreender essa dinâmica das relações de gênero, raça e classe no mercado de trabalho.
A pouca participação política das trabalhadoras da enfermagem retroalimenta a não compreensão do papel social da profissão: somos a maior categoria a produzir os ‘cuidados”, a fim de recuperar ou manter a vida e a força de trabalho dos demais trabalhadores e, consequentemente, o sistema de produção na sociedade. As desigualdades vivenciadas no mercado de trabalho, constituem ‘violencia simbólica’ em função do gênero.
O trabalho desenvolvido não é por ‘vocação’ ou ‘extensão’ do papel feminino, mas uma prática exercida por profissionais qualificadas, que merecem receber um rendimento compatível com essa qualificação, com a importância social desse trabalho e que garanta o acesso e desfrute dos demais bens sociais produzidos. Até hoje, infelizmente, as mudanças ocorridas nos currículos dos cursos de graduação não foram pertinentes à alocação adequada dos conhecimentos que possibilitem a interpretação do mundo social e produtivo onde atuamos.
Ressalta-se o crescimento acentuado do mercado educacional privado nas últimas décadas, cuja formação ‘aligeirada’ permanece centrada nas ciências biomédicas, resultando num perfil predominantemente tecnicista. Assim, o ambiente acadêmico não tem servido ao propósito de desvelar o contexto social e político necessário para a compreensão da natureza e finalidade do trabalho da enfermagem. Dificilmente nos vemos como um coletivo de mulheres, trabalhadoras, assalariadas, subalternizadas na estrutura machista de produção do setor, e humilhantemente exploradas.
Além de tudo, no contexto econômico e social nacional, as políticas de ‘retração do papel do Estado’ resultando no corte drástico de verbas para políticas públicas, em perdas de direitos nas reformas trabalhista e da previdência vêm impactando violentamente a vida e o trabalho das mulheres, gênero preferencialmente atingido nessa lógica de ‘controle do mercado’.
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1) Para Silvio Almeida (2019), a estratificação social é um fenômeno intergeracional consequente à práticas de discriminação de um grupo social, impedindo a ascensão social.
2) Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), as mulheres representam 70% da força de trabalho do setor saúde e a enfermagem constitui o seu maior contingente. Apesar disso, se mantém subalternizada quando comparada a outras profissões.
Fonte: Alva Helena de Almeida, na Carta Capital